Faz um mês hoje que eu fui submetida a uma apendicite de emergência. Estava no meio de um furacão de péssimas ideias, com pensamentos sobre findar minha própria vida. Acho que eu nunca teria coragem, porque eu já vi as consequências de tentativas ao meu redor. Quem fica sofre. Quem parte dificilmente encontrará a paz a que almeja. Mas eu pensei sim, e li a respeito do processo, e de como a gente começa a planejar resolver as pendências antes de partir. Cheguei a imaginar o modus operandi. E comecei a traçar meus planos para resolução das questões que julgava pendentes.
Na quinta-feira anterior, eu senti um enorme vazio na cabeça. Era como se todos os meus pensamentos tivessem se esvaziado, consumidos a si próprios até a sua conclusão.
Na sexta-feira anterior, dia do início da inflamação, havia gritado com todas as letras que não aguentava mais e que queria morrer. E eu queria. Queria ficar doente e partir. Ainda não sei se meu corpo deflagrou a doença a partir da dor, ou se já era a doença falando por mim.
Naquela sexta-feira, muita coisa aconteceu.
Os dois dias seguintes seguiram como se nada estivesse acontecendo. No sábado, havia um sol gostoso como se abraçasse. Filhote brincou, tentei ensinar a pular no pula-pula, mas não quis, pela n-ésima vez. Tomei uma água de coco. O final de semana foi de paz. Não houve festa no terreno da discórdia. Foi só silêncio e paz. Senti vontade de comer batata frita do Outback, então pedimos costela, batata e cebola. Definitivamente, eram excelentes opções para quem estava com infecção no apêndice. Domingo correu em paz também. E eu tomei sorvete e comi as sobras da costela, com pipoca e coca cola.
De domingo para segunda, filhote ficou mal, por conta de gases. Na segunda, acordei com uma leve dor no lado esquerdo. Achei que foi por conta da posição em que dormi, no tatame, ao lado da cama de filhote. Depois, levamos para a escola. Filhote protestou loucamente porque não queria entrar na escola - era o dia de retorno das aulas -, e eu o carreguei como um saco de batatas, com mochila e tudo, escola a dentro.
Ao voltar para casa, de carona com marido, que seguiu para o presencial, senti a dor se ampliar. Pareciam gases. Muitos gases. Doía muito na parte mais alta da barriga, do lado esquerdo. Nunca pensaria que era apendicite.
Resumindo a história, porque ela é longa, fui para o hospital achando que eram gases e querendo o remédio que me davam no tempo do colégio, que era tiro e queda. Fui achando que tomaria um remédio, de repente estava fazendo tumografia e exame de sangue, de repente estava internando, de repente era cirurgia... e até então estava serena, porque era algo simples e cotidiano na medicina. Eu só sentia gratidão por ter tido alguns sinais não relacionados à apendicite que me fizeram ir ao hospital.
Então, a anestesista me falou sobre a anestesia geral e que eu sentiria incômodo porque seria intubada. Foi aí que senti medo. Medo de não acordar. Intubação me fez pensar na pandemia, e o pânico apareceu pela primeira vez. Eu queria acordar. Eu queria abraçar meu filho.
Foi aí que girou uma chave na minha cabeça, que o psiquiatra decifrou: não é que eu queira morrer, eu só estou querendo parar de sofrer.
Ainda no mês de agosto, tivemos a devolutiva da análise neuropsicológica, e foi o cenário que a gente temia, mas já esperava: altas habilidades + risco para TEA.
Ambos têm fatores hereditários.
E aí, a segunda chave começou a abrir na minha cabeça.
Eu sempre soube que era acima da média. Eu não estudava, apenas lia em voz alta os capítulos da escola para minha mãe, até a 4a série. Depois disso, eu passei a ser responsável pelas minhas notas. Eu não fazia dever de casa. Eu relacionava tudo o que eu aprendia, em conexões que só fazem sentido pra mim. Matemática não era um conjunto de fórmulas... eu as deduzia cada vez que fazia uma questão.
Minha criação foi muito restritiva. Meus pais não tinham dinheiro para atividades extracurriculares. Eu tive condições de fazer curso de inglês - e isso pesava muito já. Mas minha mãe não queria que eu fizesse nada além de estudar. Era uma coisa meio sem sentido, quando olho hoje. Ela estimulava o desenvolvimento das minhas habilidades, mas sempre foi num sentido autodidata. Ela viu que eu aprendi a costurar olhando ela: ganhei uma máquina de costura aos 12 anos. Eu tocava músicas de ouvido com auxilio de revista aos 10 anos: ganhei um teclado caríssimo. Mas eu não podia fazer aulas, ou qualquer coisa que atrapalhasse meus estudos.
Namorar era uma das coisas proibidas: somente depois que eu entrasse na faculdade. E foi assim que eu achei erradamente que a faculdade me daria um salvo conduto.
Hoje é muito claro que meu erro foi não saber que poderia ter um trabalho e ser concursada com ensino médio. Meu tio, o único concurseiro da família, era um péssimo exemplar do indivíduo que estava eternamente fazendo prova... sem estudar.
Escolhi engenharia pela ideia errada. Queria estudar no IME, para ser militar. Engenharia foi consequência. Eu não tenho aptidões físicas, então era o único caminho que fazia sentido na minha cabeça. Eu teria um trabalho, garantido, e nas horas vagas seguiria com a minha vida.
Mas a faculdade foi muito cruel. Seja porque eu tinha 16 anos e zero maturidade quando entrei, seja porque deu sorte e entrei numa das turmas mais odiosas da minha vida (sério, que safra azeda a minha)... e a tão sonhada liberdade de agir também foi comprometida. O ápice foi minha mãe vetar a iniciação científica que eu tinha conseguido apesar do meu CR lamentável. Depois quem assumiu esse papel de vigilante foi meu irmão.
Tive pouquíssimos amigos na pequena infância. Lembro somente dos episódios de bullying - eu me recordo deles a partir dos 5 anos, idade em que fui adiantada e mudei de turma. Tinha completa inaptidão física, coisa que minha mãe nunca ligou muito. E inaptidão física quando se é criança é porta para isolamento.
(Um parênteses: minha inaptidão física só virou objeto de interesse quando minha mãe descobriu que eu me afogava numa piscina infantil no colégio. Aí minhas férias do primeiro pro segundo ano do ensino médio foram acordando 4:30 da manhã para fazer natação longe às 6 da manhã. Resultado: piores férias da minha vida)
Ser a primeira aluna me definia. Era o que eu fazia para ser aceita pelo menos para os meus pais e professores.
Quando entrei no ensino médio e fui para o meu Colégio, um mundo se abriu. De repente, eu me vi inserida num universo com jornais de colégio, com grêmio estudantil, com concursos literários, com elocuçào e tantas outras atividades extras... Minha primeira tentativa foi o coral, mas com a insistência da minha mãe que eu não poderia diminuir minhas notas, nem chegar tarde em casa. Enfim, na primeira apresentação, tomamos esporro por 3 horas e, ao chegar em casa, mais esporro. Foi assim que eu desisti do coral e comecei a fazer todas as outras atividades escondida.
Vivi essa vida dupla por 3 anos. Fui intensamente feliz e dramática como toda adolescente. Não tive sorte no âmbito amoroso nos tempos de colégio.
Minha vida era boba e dramática, e complicada, mas era minha. Até a metade do terceiro ano, em que passei a ser cobrada como nunca. Eu não lido bem com cobranças. Eu preciso de autonomia, porque eu sou naturalmente a pessoa que mais me cobro no planeta. E quando me prensam na parede, minha resposta é o extremo oposto.
Na faculdade, comecei a me culpar pela maneira como levei me ensino médio, me botando de volta naquela bolha, mas eu fui ficando cada vez mais infeliz, porque eu não era uma boa aluna de engenharia. Eu odiava tudo aquilo. Eu me odiava também.
Dei sorte de conhecer meu marido logo no início do curso e brinco que conhecê-lo (e a minha amiga J.) foram as únicas coisas boas daquele curso.
A gente se segurou para terminar.
Nas minhas crises da vida adulta, sempre eram disparadas pelo desejo de voltar ao meu coração dos tempos de colégio: livre, engajado, motivado.
Eu sei que não dá pra voltar no tempo. Também não culpo minha mãe pela forma que me criou. Ela fez o melhor que podia, especialmente diante de uma cadeia de traumas que foi a vida dela. Ela queria que eu tivesse independência financeira.
Só que hoje eu não consigo mais ser contida, sabe? Ser vigiada, ser pressionada. Finalmente entendi porque o meu marido foi a melhor pessoa pra mim: ele nunca me pressionou, ele sempre me deixou solta, e tudo o que diz respeito a nós sempre foi conversado.
Eu me sinto asfixiada às vezes.
Cara, eu resumi tanto, mas tanto os pensamentos aqui nesse texto, porque é muita coisa...
Com as avaliações e as condições de filhote, algumas memórias minhas começaram a ser desbloqueadas. Eu fico mal, porque estou revisitando pontos de dor que eu espero que filhote não precise passar.
Eu fui uma criança com altas habilidades também, tolhida, insegura, buscando aceitação o tempo todo e me sentindo inconveniente durante a vida inteira. Eu fui uma criança com altas habilidades que não desenvolveu 1/4 das minhas capacidades. Eu sou uma mulher de saúde mental frágil, que se pune por sair dos planejamentos, por pensar diferente, por ter um ponto de vista só meu.
Como parte do meu processo de cura, eu vou fazer minha propria avaliação, para ter um laudo, para ter um pedaço de papel que me liberte e que me faça parar de sentir obrigação de me desculpar com o mundo.
Somente depois disso, vou poder buscar o apoio mais indicado para mim.
Mas não vou ficar desamparada até lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário